Tuesday, March 06, 2007

Carta a Leonor

“Setembro chegou. Faz hoje exactamente quinze anos que não a via. Por incrível que pareça ainda me recordo dos seus cabelos apanhados, deixando adivinhar a forma singela do seu pescoço, naquela tarde na estação de comboios. Deixou-me, transparecendo apenas um sorriso sem jeito, como que desse por extinta uma cumplicidade que outrora expressava-se em todos os nossos actos. Foi um Verão cheio de risotas e ingénuas promessas que não viriam a ser vingadas, mas que nos davam sustento para um futuro incerto.

Foi insuportável tê-la visto esta manhã. A ironia do destino fez com que nos encontrássemos na mesma estação de comboios. Até parece que estive sentado naquele banco de madeira virado para a linha, à espera dela estes anos todos. Fisicamente está diferente, mais madura, mais forte, mas com o mesmo brilho nos olhos e o mesmo tique impaciente de morder o lábio inferior. Fui o primeiro a reparar nela, quando observava uma banca de jornais de um quiosque. A princípio mantive-me imóvel, com a sensação de que nem conseguiria andar, e com uma falta de ar “sofucante”. No momento em que ia desistir e virar costas, uma voz de semelhança intacta proferiu o meu nome em tom de interrogação. Desta vez fui eu que fiz um sorriso sem jeito. Sabia que era ela, mas virar-me seria como que aceitar de novo o sentimento, hoje descabido, de um jovem que está apaixonado pela primeira vez. A Leonor nunca foi muito segura dos seus actos, mas coragem nunca lhe faltou e voltou a repetir o meu nome.

Sabendo que à minha volta não encontraria uma situação de camuflagem, fechei os olhos e virei-me, ficando sem graça a olhar para os seus pés, como se tivessem sido eles que me tivessem chamado. Aproximou-se e sorriu. Conseguia identificar o seu cheiro no meio de tantos outros que naquele local divagavam. A Leonor sempre usou o mesmo perfume que misturado com a sua pele, tornava-se impar no universo de odores deste mundo.

Finalmente levantei o olhar e encarei aquilo que viria a ser uma conversa sem nexo, cheia de emoções por explicar e de gestos mímicos, feitos apenas por nervosos sorrisos ou olhares. Tem dois filhos, está divorciada e continua a viver em Castelo Branco, onde abriu uma loja de decoração para a qual faz algumas peças. Não é de admirar, pois sempre teve um excelente sentido criativo. Recordo as brincadeiras que inventava e as molduras ou bonecos que produzia através de aparentemente nada.

Eu sabia que podia trocar contactos, mas não o quis fazer.

A Inês é a mãe dos meus filhos e eu respeito-a. Mas ter visto hoje a Leonor, foi como que um impulso que me fez acreditar em promessas e risotas outra vez. Sabia que não a veria mais. Pelo menos nos próximos quinze anos, onde quem sabe talvez nos encontrássemos em qualquer outro Setembro.

Aqui, deitado em cima dos brinquedos do quarto do João, sinto-me confortavelmente protegido.

As persianas estavam semi-abertas, deixando entrar finos raios de luz de cores muitas. Acho que devo ter adormecido, pois nem reparei que ao meu lado, dormia o meu filho agarrado ao meu dedo. Seriam umas duas da tarde, e o cheiro a comida era já evidente pelos corredores da casa. Ensonados ajudámo-nos a adivinhar o caminho até à sala de jantar. Poisei o João na cadeira e sentei-me no sofá a recuperar os sentidos.
Uma voz de semelhança intacta proferia o meu nome em tom de interrogação. Era a Inês. Enquanto punha a mesa, repetia o meu nome vezes sem conta, mordendo o lábio inferior de nervosismo.

Foram precisos quinze anos para que, só hoje, tivesse reparado neste pormenor na Inês. Acho que devo ter adormecido, pois só agora me apercebi que ao meu lado tinha muito mais do que incertas promessas, mas sim um futuro ingénuo, como que conduzido pela mão de uma criança.

Desculpa Leonor…”

2 Comments:

Blogger Contacte-nos said...

Brilhante!

4:01 PM  
Blogger Pedro Lourenço said...

obrigado...

12:21 PM  

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